Carta à Sociedade contra o Decreto 46.314
Para: Prefeitura do Rio de Janeiro
CARTA ABERTA À SOCIEDADE
As entidades, coletivo e indivíduos abaixo-assinados vêm a público para debater acerca do Decreto Municipal do Rio de Janeiro nº 46.314, de 02 de agosto de 2019, que Suplementa a Lei federal nº 11.343; dispõe sobre a assistência à População em Situação de Rua - PSRUA, e dá outras providências.
Os estudos nacionais e municipais já realizados apontam que a permanência de pessoas em situação de rua (PSR) tem origem complexa e multicausal, muitas vezes atravessada pela extrema pobreza. O acolhimento ou recolhimento em instituições, sejam abrigos ou hospitais, têm efetividade limitada e temporária. Para enfrentamento verdadeiro desta situação se faz necessária uma política intersetorial ampla, que extrapole o isolamento de ações da assistência social e da saúde, incluindo as áreas da habitação, emprego e renda, educação, cultura e lazer, dentre outras, assim como versam o Decreto Federal no 7.053, de 23 de dezembro de 2009 e a Lei Municipal no 6.350, de 4 de maio de 2018 que institui a Política Municipal para a População em Situação de Rua.
Causa no mínimo estranheza que, após mais de um ano de promulgação da Lei nº 6.350, a gestão municipal não tenha avançado na sua operacionalização e sequer tenha instituído o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a PSR. Na contramão, decreta um conjunto de ações que ferem os princípios descritos no seu artigo 4o:
“VI - a erradicação de atos violentos e ações vexatórias e de estigmas negativos e preconceitos sociais que produzam ou estimulem a discriminação e a marginalização, seja pela ação ou omissão;
VII - o respeito à liberdade de decisão em relação à permanência em situação de rua ou adesão voluntária ao acolhimento institucional.”
A realização de um cadastro atualizado da PSR no município, proposta no Decreto, tem significativa importância. Contudo, a previsão de obrigatoriedade de fornecimento de informações pessoais por parte da PSR, prevendo o uso da força policial em caso de recusa, bem como a execução de revistas e apreensões de rotina motivadas apenas pelo fato da pessoa encontrar-se em situação de rua fere direitos assegurados pela Constituição Federal. Caracterizar o conjunto da PSR como periculosa e/ou fora de suas faculdades mentais alimenta, na sociedade em geral, sentimentos de preconceito e repulsa que em nada colaboram para melhorar o contexto de quem vive nas ruas. Lembramos que muitas vezes estas pessoas já foram vítimas de diversos tipos de agressão, tal qual o episódio conhecido como a “Chacina da Candelária”, ocorrida aqui mesmo, no município do Rio de Janeiro. Além disso, a proposição de um conjunto de ações que contradizem uma Lei Municipal, associada a inoperância para a implantação desta mesma lei, caracteriza um desrespeito do Poder Executivo Municipal com os princípios democráticos e republicanos que regem nossa sociedade.
Neste mesmo sentido, estabelecer como sinônimos pessoa em situação de rua e dependente químico é um equívoco. Ainda mais grave é a proposta de atuação para aqueles que de fato se encontram em sofrimento decorrente do uso prejudicial e dependência de substâncias contida no referido decreto.
A dependência de drogas, lícitas ou ilícitas, é uma questão de saúde que se caracteriza como um problema crônico que envolve não apenas os efeitos da substância em si, mas um conjunto de fatores psicossociais individuais e coletivos e que demanda acompanhamento de longo prazo. Para tal, temos como referência instituída em legislação a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) composta de diversos serviços como os CAPS-AD, Unidades de Acolhimento-AD e Consultório na Rua, que se articulam com os demais equipamentos da Saúde Mental, Atenção Básica, bem como da rede da Assistência Social. O recurso da internação está previsto no desenho da RAPS, mas sem ser o centro do plano de cuidados, e tampouco sendo indicado na maioria dos casos. A internação involuntária, por sua vez, é um recurso que deve ser de uso ainda mais excepcional, na falência de todos os outros recursos. Foco de diversas críticas, nem mesmo a Lei Federal nº 13.840 de 2019 sustenta um plano de ação focalizado na internação como primeiro e principal recurso, versando que:
“(A internação involuntária) será indicada depois da avaliação sobre o tipo de droga utilizada, o padrão de uso e na hipótese comprovada da impossibilidade de utilização de outras alternativas terapêuticas previstas na rede de atenção à saúde;(...)
“A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.”
Para garantir o acesso longitudinal a uma rede de cuidados é preciso compromisso em fortalecê-la. Atualmente, os CAPS-AD não cobrem todas as áreas da cidade. Além do número insuficiente, sofrem com a redução do quadro de profissionais e falta corriqueira de medicamentos e outros insumos. O mesmo se repete em outros serviços da RAPS e da saúde municipal de maneira geral (como exemplo, o descredenciamento recente de mais de 150 equipes da Estratégia Saúde da Família e seus núcleos de apoio). A rede de assistência social também sofre com a falta de investimento, observada nos baixos números de Unidades de Acolhimento disponíveis e nas precárias condições das existentes, no baixo número de profissionais que compõem as equipes e na inexistência de serviços específicos, como o Centro Pop, com somente duas unidades na Cidade também operando em instalações precárias.
Na mesma semana em que o referido Decreto é publicado, a Prefeitura noticiou na capa do Diário Oficial, de 09 de agosto de 2019, o Encontro das Comunidades Terapêuticas e Entidades de Prevenção e Reinserção Social, onde anunciou parceria com o Governo Federal para ações conjuntas anti-drogas. Reafirma-se uma direção política que preza pela abstinência como única estratégia forma de intervenção, que foca na droga como o objeto de ação, desconsiderando os sujeitos, suas histórias e os determinantes sociais de saúde. Quando atual retrato do município é de desinvestimento nas políticas sociais, causa enorme preocupação que os recursos para seu investimento e manutenção, hoje já escassos, sejam direcionados para as Comunidades Terapêuticas.
A idéia de que a internação para desintoxicação tem grande resolutividade a longo prazo é falaciosa e carece de respaldo científico. Internação forçada em massa voltada especificamente para a PSR representa o retrocesso ao modelo manicomial e uma tentativa de travestir como política de saúde a criminalização da pobreza, simples e pura.
Assim, reivindicamos a revogação do Decreto nº 46.314 e a instituição imediata do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a PSR, tal qual previsto na Lei Municipal, para que este possa traçar estratégias e ações de curto, médio e longo prazo que de fato resultem em um cuidado adequado, que promova mais qualidade de vida e garantia efetiva de direitos para aqueles que hoje vivem nas ruas, refletindo consequentemente na construção de uma cidade mais saudável e acessível para todos os cariocas.