MANIFESTO CONTRA O CARÁTER ILUSÓRIO DO I JOGOS MUNDIAIS DOS POVOS INDÍGENAS, PELO RESPEITO À SUSTENTABILIDADE E AOS DIREITOS DESTES POVOS
Para: Presidência da República
“Em 2015, somos todos indígenas”?*
Considerando as garantias legais reconhecidas aos povos indígenas brasileiros na Constituição Federal de 1988, nos arts. 231 e 232, sobretudo no que toca o reconhecimento do direito originário a suas terras tradicionais e da organização social, bem como, as garantias expressas em documentos internacionais de direitos humanos, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, promulgada em 2004, internalizada com força constitucional, e, ainda, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, da qual o Brasil é signatário, nota-se, desde então, a existência de um arcabouço normativo nacional e internacional de proteção às comunidades tradicionais, basado numa nova concepção, isto é, abandonou-se, de uma vez por todas, a visão integracionista para vigorar o respeito à diversidade cultural e social.
Ressaltamos as seguintes determinações presentes no caput e parágrafo 1º, do art. 231, da Constitutição Federal, de 1988:
“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.” (grifo nosso)
Reafirmamos aqui a posição contrária dos povos indígenas à PEC 215. O objetivo desta proposta é retirar do Poder Executivo a prerrogativa de demarcar terras indígenas e atribuí-la ao Congresso Nacional, o que, na prática, significa (mais) morosidade nos processos de demarcação, cujos critérios deixarão de ser relacionados ao uso ancestral das terras conforme laudo de especialistas e passarão a ser meramente políticos, influenciados pelos interesses dos grupos econômicos representados no Congresso, principalmente da Bancada Ruralista. Nesse sentido, a Constituição Federal, que inaugurou um verdadeiro marco ao consagrar, de forma pioneira, o respeito ao pluralismo cultural e jurídico reconhecendo assim a organização social dos indígenas, se vê ameaçada. Tal manobra, além de inconstitucional, viola também os tratados internacionais assinados pelo Brasil.
Por conseguinte, reiterando que o direito originário dos povos indígenas de permanecerem em suas terras tradicionais contribui com a necessidade de proteção ao meio ambiente e com seu equilíbrio; que a sustentabilidade ambiental tem direta relação com o respeito a direitos e territorialidades dos povos indígenas e que não é possível tratar estes temas de forma isolada. e, buscando impedir que interesses de setores conservadores se sobreponham aos direitos dos povos indígenas, conclamamos:
Em 2015, NÃO somos todos indígenas!
Este manifesto se posiciona contra o caráter ilusório inerente aos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, que acontecerá em Palmas (TO), de 23 de outubro à 1 de novembro de 2015. Tal evento mascara os conflitos fundiários e as reais problemáticas enfrentadas pelos povos indígenas no Brasil. Este manifesto se posiciona por meio de uma visão de sustentabilidade e efetivação dos direitos dos povos indígenas em prol da verdadeira proteção ambiental e do respeito à diversidade cultural destes povos.
Existe uma falta de vontade política do governo em garantir aos povos indígenas a demarcação e homologação de suas terras, bem como de efetivamente proteger aquelas já demarcadas. Muitas das terras estão situadas em regiões especialmente ricas em recursos naturais. Historicamente, o que (sempre) ocorreu e ocorre é uma verdadeira pressão dos latifundiários em torno da exploração dessas áreas que, constitucionalmente, foram reconhecidas à comunidade indígena para seu usufruto perpétuo e pacífico. A cultura indígena vem sendo deixada de lado ao passo que os donos do agronegócio, as grandes companhias agrícolas, as empreiteiras, as mineradoras, os madeireiros, avançam e destroem as terras indígenas, além de não respeitarem as demarcações acordadas pelo governo.
A sustentabilidade deve ser considerada uma meta que só pode ser pensada e atingida se aliada à efetivação dos direitos dos povos indígenas. O modo de vida dos povos indígenas não pode ser rompido, interrompido ou corrompido pelas atuais políticas perpetradas em prol de um suposto desenvolvimento econômico que nada tem de sustentável. O governo tem obrigação de garantir elementos para o desenvolvimento sustentável do país e também dos povos indígenas, principalmente no tocante à demarcação de suas terras e à proteção de seus direitos e suas culturas.
O Congresso Nacional não pode ter poder de decisão sobre a homologação de terras indígenas. A Constituição já reconhece tal direito, devendo apenas serem demarcadas as terras indígenas. Reconhecer é bem diferente de discutir. O peso maior no procedimento demarcatório deve ser dos próprios povos indígenas, exatamente por ser um direito reconhecido e não um direito que será constituído - é um direito originário, que sempre existiu, desde muito antes da própria Constituição o reconhecer. Esse pode ser o único caminho viável à real sustentabilidade.
Os povos indígenas identificam duas necessidades urgentes: a conclusão dos processos demarcatórios das terras indígenas e o fortalecimento do conhecimento das comunidades indígenas e de suas organizações com o fim de desenvolverem os seus próprios projetos. Com efeito, os esforços e investimentos dispendidos para a realização dos Jogos deveriam ser empenhados e alocados nestas instâncias. Essas, sim, seriam grandes conquistas para os povos indígenas.
O evento não contempla os reais anseios e demandas dos povos indígenas. Por outro lado, representa um gasto inefetivo no que tange seus objetivos, além de fazer o desfavor de maquiar para outros países a real situação fundiária, conflituosa e miserável em que vive a grande maioria dos povos indígenas do Brasil.
Enquanto minimamente todas as terras indígenas não forem demarcadas, enquanto a saúde e a educação indígena não forem realmente diferenciadas, enquanto as crianças indígenas morrerem de desnutrição, enquanto as cestas básicas não chegarem nos acampamentos dos Guarani no Mato Grosso do Sul, enquanto este povo continuar recordista de suicídios de jovens e lideranças assassinadas, e enquanto o Brasil permanecer destaque nas violações dos direitos indígenas fundamentais, é incabível aceitar a realização do I Jogos Mundias dos Povos Indígenas, com todo esse caráter ilusório de um país preocupado com a sustentabilidade e respeito ao meio ambiente e diversidade étnica.
Em 2015, e enquanto os direitos dos povos indígenas não forem respeitados, NÃO somos todos indígenas!
* mote do I Jogos Mundiais dos Povos Indígenas
Créditos da foto: http://www.jogosmundiaisindigenas.com/